Os Campos do Senhor


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O condenado, amarrado em suas mãos, sorria às paredes quando o sacerdote entrou:

- Tens motivos para sorrir?

- Não há graça maior que a compreensão. Tua presença, sobretudo, inspira-me alegrias que antes nunca tivera.

- O Senhor esteja contigo.

- Repetes tuas palavras usando-as como signos de tua autoridade. Não me importam, desta maneira.

- Como queres que as repita?

- Com a sabedoria de quem as criou.

- É esta a minha intenção.

- O Senhor está mesmo comigo?

- Ele está incondicionalmente em todos nós.

- Deixarás que matem teu senhor?

- Ele não morrerá contigo. O Senhor é a glória e, portanto, estará contigo enquanto sobreviver a esperança de te arrepender.

- Ele me abandonará, eu sei.

- O Senhor não abandona um filho seu.

- Então morrerá comigo.

- É inquestionável a eternidade de Deus. Teus pecados já são bastantes. Não tentes tornar impossível tua salvação.

- Teu senhor pode me salvar?

- O poder de Deus é infinito.

- Ninguém pode me salvar. Não pude compreender algumas verdades antes de ser devorado por elas. Empreendi alguns passos para que um dia alguém os compreenda a tempo e seja realmente salvo. Fiz a parte que me cabia e estou feliz por isto. Tenho certeza de não ter decepcionado meu senhor, pois não esperava de mim mais que a compreensão dos meus próprios erros.

- Por que foste condenado?

- Não tinha para os meus filhos o que comer. Ninguém me tinha dado o que fazer para que eu pudesse pedir em troca o alimento. Pensei que não seria justo deixar meus filhos definhando enquanto outros se fartavam em abundância. Entrei numa casa onde não faria falta o que eu pretendia levar, mas fui surpreendido pelo cozinheiro. Ele avançou contra mim com uma faca e se não o matasse, ele me mataria, pois julgava-me o pior de todos os homens, gritava usando todos os xingamentos que tinha em mente. Tentei fugir, mas não soube fazê-lo. Eu estava imobilizado pela gravidade da circunstância em que me tinha posto.

- Disseste-me que não há maior graça que a compreensão. Compreendes também essa circunstância em que te puseste?

- Por isto eu sorria quando entraste.

- Perdeste a fé?

- A compreensão só nos torna mais próximos do Senhor. Minha fé só está menos cega.

O sacerdote baixou seus olhos admitindo não ter tanta compreensão e perguntou:

- O que estás enxergando e que eu ainda não posso ver?

O prisioneiro se levantou, dirigiu-se à janela e iniciou sua resposta:

- Um lavrador semeou boa semente em seu campo. Entretanto, numa noite, quando todos já dormiam, um inimigo do lavrador semeou joio junto ao trigo e se foi. Quando o trigo cresceu e as espigas começaram a se formar, apareceu também o joio. Os empregados procuraram o lavrador e lhe disseram: "Senhor, não semeaste boa semente em teu campo? Então, de onde apareceu esse joio?" O lavrador respondeu: "Algum inimigo o semeou". Os empregados lhe perguntaram: "Queres que arranquemos o joio?" O lavrador disse: "Não. Pode acontecer que, arrancando o joio, arranquem também o trigo. Deixem crescer um e outro até a colheita. Em seu tempo direi aos ceifadores: arranquem primeiro o joio e o amarrem em feixes para que seja queimado. Depois recolham o trigo ao meu celeiro".

Matias, o prisioneiro, deixou a janela, sentou-se novamente à frente do sacerdote e prosseguiu:

- Somos os campos onde o Senhor semeia suas palavras. Entretanto, a inteligência, que com o seu advento nos diferenciou dos outros animais e a todo instante nos oferece alternativas, tenta-nos a cultivar também outros princípios, tornando-nos sujeitos ao pecado, contudo, são os erros que nos encaminham aos acertos. Sem a inteligência não teríamos como errar, mas também não teríamos como encontrar a verdade. Nossas experiências, também com as alternativas incorretas, ensinam-nos a diferenciar o joio do trigo. Portanto, todos temos, em cada um de nós, a mentira e a verdade. O Senhor nos pede, por isto, que não matemos nossos semelhantes para que não matemos também suas palavras. Ele espera pacientemente pela colheita, pela consumação do destino que escolhemos para as nossas vidas, para que seus princípios sejam preservados e seu trabalho tenha continuidade, para que as experiências humanas sobrevivam de geração a geração e tenha seqüência a construção deste mundo que ainda busca a consciência de si mesmo.

O sacerdote lhe sorriu. Deixou-se pensar se haveria alguma chance de impedir a execução de Matias. Ao amanhecer, os soldados viriam buscá-lo. Sua imaginação distanciava-se vertiginosamente quando aquele que se confessava o interrompeu:

- Em que estás ocupado?

- Minha história não me permitiu tais conclusões. Minhas experiências, enfim, não foram suficientes para encadear tais pensamentos. Devo admitir, por isto, que mesmo me dedicando inteiramente às palavras do Senhor não fui digno de tamanha clareza. Mataste, descumpriste as leis de Deus, mas aprendeste tanto com teus erros que me sinto vergonhosamente ludibriado pela minha ignorância.

- Tua história ainda não terminou. Tens por que e como te escolher outro destino.

- Não tenho mais aqui o que fazer. Confessa a ti mesmo o que ainda tens a te arrepender e estarás perdoado.

O confessor deixou a cela determinado a alguma atitude que o confortasse. Matias se deitou, mas não adormeceu. "Terei tempo demais para descansar". Passou grande parte da noite acompanhando o movimento das nuvens que balanceavam o luar. Ao amanhecer, o carcereiro o chamou e pediu que o acompanhasse:

- Traze teus pertences.

Matias acomodou duas calças, duas camisas, dois livros e um par de sapatos numa sacola e saiu. O responsável por sua guarda o esperava em sua sala com um laço de forca entre as mãos:

- Estás livre; vai quando quiseres.

O ex-prisioneiro gastou alguns segundos em silêncio, imaginando o que poderia ter acontecido, mas nenhuma das possibilidades que imaginou o convenceu:

- Por que?

- Não sei. Estou só cumprindo mais uma ordem.

Ainda no caminho de volta para a casa, um mensageiro o interceptou para lhe entregar uma encomenda: um livro dos evangelhos. À margem do capítulo 13 de Mateus havia a seguinte anotação: "Estou encarcerado por teu crime, mas não te preocupes, um sacerdote não pode ser condenado à morte: estou apenas preso ao que me inspiraste compreender".

Mario Cesar Rodrigues

(Conto do livro SONHOS NÃO NASCEM EM VÃO, Editora Vila Nova )